Uma mentira repetida mil vezes…

Existe uma narrativa instalada que deve ser desmontada: a de que as empresas são o verdadeiro — ou até mesmo o único — motor de criação da riqueza. A verdade é que o valor é produzido pelas pessoas — trabalhem elas por conta própria ou por conta de outrem; no setor privado ou no público; ou mesmo que estejam reformadas ou desempregadas. Normalmente, onde há gente a trabalhar — seja numa empresa privada, numa cooperativa, no setor público, ou na própria casa — há riqueza a ser criada.

A riqueza gerada por uma empresa permite pagar os salários de quem lá trabalha. Mas não se fica por aqui: a empresa só vende bens ou serviços se o seu preço for inferior ao preço que o consumidor está disposto a pagar — ou seja, também foi criada riqueza para o consumidor. Até num contexto empresarial, fica evidente a diferença entre o preço das coisas e o seu valor.

A produção de valor transcende o mundo empresarial. Se um hospital privado produz valor, o que dizer do hospital público? E se olharmos a montante? Quanto valor é criado pela medicina preventiva ou pela promoção de hábitos de vida saudáveis — ensinamentos presentes na escola pública?

Mais: a criação de valor não se esgota na vida profissional. Uma refeição caseira vale muito mais que o valor dos ingredientes. Como sabemos, as refeições são normalmente cozinhadas pelas mães, pelas esposas, pelas avós. Toda esta enorme riqueza gerada quotidianamente tende a ser omissa quando se discute economia e política no espaço público. Sobre a economia doméstica e a sua relação com a desigualdade de género, não posso deixar de recomendar a excelente entrevista que Jayati Ghosh concedeu ao podcast System Shift.

Infelizmente, há quem se dedique a atividades que, ao invés de criar valor, destroem ou parasitam o valor criado por outrem. Um exemplo do primeiro caso são os fabricantes e negociantes de armas. Quanto ao segundo, um caso bem documentado é do serviço de “planeamento fiscal” prestado pela PwC a várias multinacionais, permitindo-lhes pagar apenas 1% de imposto sobre os lucros. Neste caso, em vez de alguma riqueza ser transferida para a população, por via dos impostos, a generalidade ficou nas multinacionais, e alguma foi para a consultora, que não produziu nada de útil.

O parasitismo remete para uma questão da maior importância: a distribuição da riqueza gerada. Voltando ao caso da empresa, o valor produzido foi distribuído, pelo menos, pelos seus clientes e pelos seus trabalhadores. Muito provavelmente, foi paga uma renda aos proprietários do espaço, foram pagos juros à banca, e o remanescente ficou com os acionistas — que podem nunca ter lá posto os pés. Assim, as empresas repartem o valor criado pelos clientes, pelos trabalhadores e pelo capital. No caso do setor público e das cooperativas, o valor é distribuído principalmente pelos trabalhadores e pelos usufrutuários. E no que toca ao trabalho doméstico e informal, o valor tende a ir para quem é próximo de quem trabalha: familiares, amigos, vizinhos.

É preciso valorizar todo o trabalho, e não apenas aquele que contribui para encher os bolsos dos acionistas e financiadores. É fácil perceber quais são as classes sociais com interesse em disseminar a ideia de que o trabalho “a sério” é aquele que acontece no contexto empresarial. Cabe-nos, aos restantes, combater essa narrativa. As políticas públicas devem reconhecer quem trabalha para o próximo e devem apoiar quem tem necessidade. Devemos subsidiar grandes grupos económicos, ou garantir creches e lares de terceira idade gratuitos, universais e de qualidade, que, para além de criarem emprego, aliviam quem cuida?