Uma bolha é uma bolha é uma bolha
Fulano julgava-se rico por ser dono de uma cadeira que dizia valer dez milhões de euros, apesar do seu aspeto banal. As pessoas à sua volta não ligavam aos seus devaneios, até ao dia em que Fulano anunciou ter ficado ainda mais rico, por ter vendido a cadeira acima do valor que lhe atribuía. Quando lhe perguntaram quem teria comprado tal cadeira, Fulano explicou: foi Sicrana, que lhe deu dois banquinhos — cada um valendo seis milhões — em troca da cadeira.
A valorização que Fulano faz dos seus assentos é inócua, de tão absurda que é. Porém, a anedota tem eco no atual panorama financeiro. Em 2009, Satoshi Nakamoto criou, algoritmicamente, a bitcoin. Enquanto uma cadeira serve para se sentar, uma bitcoin não tem utilidade quotidiana nem monetária: ao contrário do dinheiro, não é amplamente usada como moeda de troca. Ainda assim, à luz da valorização atual, se dividissemos uniformemente as bitcoins existentes por todos os portugueses, cada pessoa ficaria cerca de 200 mil euros mais rica. Se juntarmos outras criptomoedas, o valor duplica — e continua a crescer quando incluímos os derivados financeiros destas.
Isto não é uma curiosidade inofensiva. À medida que as criptomoedas valorizam e se integram no sistema financeiro, contaminam fundos de pensões, seguros de vida e aplicações financeiras de que depende a estabilidade económica de milhões de pessoas. A história oferece-nos precedentes sombrios. Em 1997, na Albânia, o colapso das pirâmides de Ponzi — esquemas sem base produtiva, tal como as criptomoedas — provocou tumultos, derrubou o governo e mergulhou o país no caos. A diferença é que agora a escala é outra.
As criptomoedas representam um novo capítulo numa narrativa mais ampla: a progressiva financeirização da economia mundial. Francisco Louçã e Michael Ash mostram-no no livro Sombras, onde documentam como, nas décadas que antecederam a crise de 2008, o sistema financeiro se descolou da economia produtiva, com grandes empresas a priorizar a engenharia financeira em detrimento do investimento real. A crise deveria ter servido de lição. No entanto, assistimos hoje à difusão da especulação.
Esta financeirização desenfreada expõe as limitações dos nossos instrumentos de medição económica. O PIB cresce com a especulação. A atenção excessiva que lhe continuamos a dar induz em erro os decisores políticos, levando-os a celebrar como “crescimento” o que muitas vezes não passa da transferência de recursos dos setores produtivos para os especulativos, que não criam valor: apenas o redistribuem, consolidando fortunas.
É preciso repensar a economia, voltando aos fundamentos: que modos de organização nos permitem, enquanto sociedade, usar os recursos de que dispomos — ambientais, humanos e tecnológicos — para vivermos com conforto, saúde, e sustentavelmente? E como evitar que voltemos a pagar pelas bolhas que alguns vão criando?
Breves
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Ainda bem que André Franqueira Rodrigues se encontra entre os 5 eurodeputados portugueses que exigiram a condenação dos ataques contra a Gaza Global Flotilla. Pena termos escolhido mal os outros 16.
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Pedro Gomes escreveu ontem neste jornal sobre “uma diminuição do endividamento e uma gestão cuidadosa da dívida” açoriana desde 2021. Mentiu: segundo o Banco de Portugal, a dívida cresceu de 2485 milhōes de euros (primeiro trimestre de 2021) para 3401 milhões — um ritmo de 229 milhões ao ano.
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Por fazer parte das listas do BE nestas autárquicas, só me será permitido voltar a escrever aqui após as eleições. Aproveito já para apoiar publicamente a candidatura da Jessica Pacheco à Câmara da Ribeira Grande. É uma ativista militante, com uma capacidade de trabalho, inteligência e empatia que são do melhor que há na política. Oxalá esta candidatura focada no essencial — na qualidade de vida, no acesso à habitação e no respeito pelo meio ambiente — encha de esperança a gente da Ribeira Grande. Temos alternativa: valorizemo-la!