Balanço de algumas desigualdades
Na próxima terça-feira, terá início a octogésima Assembleia Geral das Nações Unidas. Este fórum propõe-se a dar atenção aos desafios que mais atormentam a humanidade e discutir soluções para os mesmos.
António Guterres, que dará início à sessão, enumerou, por esta ordem, os quatro desafios mais prementes em 2025: conflitos desenfreados, desigualdades galopantes, crise climática e tecnologia fora de controlo.
Sobre os conflitos armados, reitero o que escrevi recentemente: Portugal e a União Europeia não podem deixar de usar toda a capacidade de influência que têm sobre os beligerantes. Dada a situação na Palestina e na Ucrânia, temos o dever de aplicar as sanções mais pesadas possíveis às lideranças israelitas e russas.1
A Concentração Extrema de Riqueza
Quanto às desigualdades galopantes, o World Inequality Report, coordenado por Chancel, Piketty, Saez e Zucman — disponível em https://wir2022.wid.world e com um sumário de 11 páginas —, faz um excelente balanço das desigualdades a nível mundial.
O relatório informa que o 1% mais rico da população mundial capturou 38% do crescimento económico que se verificou entre 1995 e 2021, ao passo que a metade mais pobre ficou com 2% do aumento da riqueza. Mais: 0,01% da população mundial — cerca de meio milhão de adultos, com ativos superiores a 17 milhões de euros em 2021 — detém mais de 10% do total da riqueza. Feitas as contas, são mais de mil vezes mais ricos que a média. É um sintoma de um sistema económico que desrespeita o trabalho.
Estes multimilionários são menos tributados que muito da população trabalhadora. Assim, perante um sistema fiscal vigente profundamente injusto, defendo que se reduzam os impostos sobre quem menos tem (como o IVA sobre produtos de primeira necessidade) e se financiem investimentos na educação, saúde e transportes através de impostos sobre o património multimilionário.
Desigualdade Climática
Esta desigualdade replica-se dramaticamente nas emissões de carbono. Para limitar o aquecimento global a 2°C, as emissões per capita não devem exceder o equivalente a 3,4 toneladas de CO2 anuais. Contudo, em 2019, a média mundial situava-se nas 6,6 toneladas per capita — o dobro do sustentável.
O contraste entre ricos e pobres é brutal: a metade mais pobre emite menos de 2 toneladas anuais per capita, enquanto o 1% mais rico emite, em média, mais de 100 toneladas. Uma ida e volta Lisboa-Ponta Delgada gera mais de 600 kg de CO2e por passageiro — quase um quinto da quota anual sustentável de uma pessoa. Voos em classe executiva correspondem a um acréscimo de emissões na ordem dos 50% e os jatos privados emitem incomparavelmente mais.
A conclusão é óbvia: a aviação privada tem de acabar, assim como a isenção de IVA na aviação comercial — um subsídio que incide principalmente sobre os mais ricos. A justiça climática exige justiça fiscal.
Vontades
No seu discurso, ao referir que existem soluções disponíveis para estas crises, Guterres aludiu a uma metáfora interessante: a de que, ao invés de reinventar a roda, o que precisamos é de pô-la em movimento. Tem razão: são tudo questões de vontade política.
Faz falta uma maior pressão popular no que toca a estes assuntos. Os dados estão à vista, as soluções são conhecidas — resta mobilizar a sociedade civil para que os decisores políticos ajam. Mãos à obra!
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Sobre a atual relação entre Israel e a Palestina, aproveito para recomendar a série documental do The Guardian entitulada Along the Green Line. ↩